A polêmica em torno da nova Lei da Regularização Fundiária
A regularização fundiária urbana tornou-se, nos últimos anos, uma espécie de unanimidade entre estudiosos, profissionais e políticos envolvidos com temas urbanos. A política de remoção de favelas, que prevalecia até a década de 1980, foi abandonada. Em seu lugar, passou-se a promover a urbanização desses assentamentos, de modo a manter a população nos bairros em que se encontram, melhorando progressivamente a infraestrutura urbana. Mais recentemente, ganhou ênfase a dimensão jurídica dessa política, voltada para a titulação dos moradores. Em lugar de “urbanização de favelas”, fala-se atualmente de “regularização fundiária de assentamentos informais”, abrangendo não apenas as favelas, decorrentes de ocupações espontâneas, mas os loteamentos clandestinos e irregulares, originado pela ação ilegal de proprietários ou grileiros.
Apesar do consenso em torno da necessidade de regularizar os assentamentos informais, a recente Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017, que dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, é objeto de acirrada polêmica desde a sua origem. Além de alterar diversas outras leis, a lei substituiu integralmente a legislação básica da regularização fundiária urbana então vigente. [1]
De um lado, o governo afirma que a lei beneficia milhões de moradores de áreas irregulares, que receberão o direito de propriedade sobre os terrenos que ocupam, viabilizando a obtenção de empréstimos bancários para investimentos no próprio imóvel ou em pequenos negócios[2]. De outro, os críticos afirmam que a lei destrói a política de regularização fundiária construída a partir de 2009, desconsidera a ordem urbanística e a preservação do meio ambiente, dispensa a provisão de infraestrutura pelo poder público, estimula a expulsão dos moradores de baixa renda pelo mercado imobiliário e favorece grileiros de alta renda[3].
Vamos analisar os principais argumentos dessa polêmica, nos restringindo à regularização urbana.
A Lei manteve o modelo básico da legislação anterior.
Apesar de ter revogado integralmente a legislação anterior, a nova Lei manteve sua estrutura básica: identificação e consulta aos proprietários da área ocupada (demarcação urbanística); elaboração e aprovação de projeto urbanístico; abertura de matrículas após o registro do projeto e concessão de títulos de legitimação de posse conversíveis em usucapião depois de cinco anos.
O correto em termos de técnica legislativa teria sido a promoção de alterações no texto da Lei anterior, ao invés da criação de uma nova lei. Desse ponto de vista, não se pode deixar de condenar a revogação desnecessária de uma lei que conhecida e sua substituição por um texto mal redigido, cuja aplicação poderá gerar diversas dúvidas.
Apesar disso, não se pode dizer que a política de regularização fundiária tenha sido comprometida, inclusive porque a nova Lei faculta aos municípios continuar aplicando a lei antiga aos procedimentos iniciados na sua vigência.
A Lei não permite regularizações à margem da ordem urbanística. Por isso mesmo, não haverá regularizações em massa nem expulsão da população de baixa renda pelo mercado imobiliário.
Ao contrário do que afirmaram diversas autoridades e políticos favoráveis à Lei, ela não permitirá ao governo federal distribuir de imediato nenhum título de propriedade urbana. Em primeiro lugar, porque a União só poderá transferir os imóveis de sua titularidade, administrados pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU), que são uma pequena fração do universo a ser regularizado. Em segundo lugar, porque mesmo estes só poderão ser transferidos depois da aprovação pelo município de um projeto urbanístico de regularização fundiária.
A exemplo do que já ocorria no contexto do Capítulo III da Lei de 2009, a regularização fundiária só pode acontecer depois da aprovação, pelo município, de um projeto urbanístico específico para cada assentamento. Esse projeto promoverá o parcelamento do solo, indicando os logradouros e terrenos públicos e definindo a localização dos futuros lotes.
O projeto é necessário porque, embora se busque manter, na medida do possível, inalteradas as construções preexistentes, a regularização pode demandar correções no assentamento, como a desocupação de áreas de risco, a abertura de áreas livres de lazer, o alargamento de vias para circulação de ambulâncias, caminhões de lixo e viaturas policiais, e a instalação de equipamentos, como escolas e postos de saúde.
Tanto a elaboração quanto a aprovação do projeto exigem a participação de profissionais, como topógrafos, arquitetos e engenheiros, assim como a existência, na prefeitura, de um cadastro imobiliário e de um levantamento georreferenciado da situação existente. A maioria dos municípios não dispõe dessa estrutura e os demais só conseguem dar conta de uma pequena fração dos assentamentos existentes.
A aprovação do projeto é essencial para que os imóveis passem a ter existência no mundo jurídico, o que se dá pela abertura das respectivas matrículas no registro de imóveis. Só depois de abertas as matrículas é que os respectivos imóveis podem ser transferidos aos ocupantes.
No atual contexto de restrição orçamentária, dificilmente os municípios (ou mesmo os estados, o Distrito Federal ou a União) poderão ampliar significativamente os recursos destinados à regularização fundiária, o que permite concluir que essa política continuará a ser executada lentamente.
A Lei não reduz as exigências ambientais e urbanísticas para a regularização dos assentamentos de média e alta renda.
No que diz respeito aos requisitos ambientais e urbanísticos da regularização fundiária, praticamente nenhuma alteração se fez com relação ao que dispunha a Lei anterior.
A nova Lei distingue entre a regularização de interesse social (Reurb-S), voltada para a os assentamentos ocupados predominantemente pela população de baixa renda, e a regularização de interesse específico (Reurb-E), relativa aos demais casos. Na Reurb-S, todas as despesas são custeadas pelo poder público e os atos registrais são gratuitos. Na Reurb-E, cabe ao poder público determinar os responsáveis pela regularização, e os atos cartoriais devem ser pagos pelos interessados.
Ambas as modalidades são sujeitas à mesma exigência de projeto urbanístico, que deverá prever medidas de mitigação e compensação urbanística e ambiental. No caso de assentamentos em área de preservação permanente (APP), disciplinado pelo Código Florestal, há um tratamento diferenciado, que é mais rigoroso no caso da Reurb-E.
A Lei permite a titulação dos ocupantes independentemente da execução de obras de infraestrutura.
Os críticos da lei têm razão quando afirmam que ela não exige a instalação da infraestrutura urbana como pré-requisito para a titulação dos moradores. Uma vez registrado o projeto urbanístico, os lotes podem ser transferidos aos moradores, mesmo que nenhuma obra de urbanização tenha sido realizada. Ocorre que esse já era o sistema da Lei anterior, que também se limitava a exigir o projeto urbanístico, mas não a realização das obras, como condição para a regularização fundiária.
Registre-se que o parcelamento regular do solo, disciplinado pela Lei 6.766/1979, também não exige que as obras de urbanização tenham sido executadas para que os lotes possam ser comercializados. Cabe ao empreendedor apresentar à prefeitura, juntamente com o projeto de loteamento, um cronograma de execução das obras, que não pode ser superior a quatro anos, acompanhado de garantias.
A Lei revogada limitava-se a prever a existência de um “termo de compromisso” sobre as medidas de mitigação e compensação urbanística e ambiental, na regularização de interesse específico. No caso da regularização de interesse social, não havia nenhum documento relativo às obras, de responsabilidade do poder público. A nova Lei estendeu a exigência do termo de compromisso também à Reurb-S e incluiu entre os elementos essenciais do projeto um cronograma de implantação da infraestrutura.
A Lei viabiliza a distribuição indiscriminada de terrenos públicos.
A nova Lei efetivamente prevê a doação indiscriminada de terrenos da União para seus respectivos ocupantes, dispensando, inclusive, a necessidade de avaliação prévia do valor desses bens.
Além disso, ela cria um instituto jurídico novo, denominado “legitimação fundiária”, que autoriza o município a atribuir a propriedade do terreno (público ou privado) ocupado ao morador de “núcleo urbano informal consolidado” existente em 22 de dezembro de 2016 (data da edição da MPV 759/2016), independentemente do período anterior de posse. O proprietário de um terreno invadido em novembro de 2016 poderá, por exemplo, ser confiscado por um ato do município, sem direito a qualquer indenização, caso este entenda que a ocupação estava consolidada na data citada.
Trata-se de uma inovação claramente inconstitucional, porque desconsidera o direito de propriedade existente sobre esses terrenos. A Constituição admite apenas a usucapião de terrenos privados de até 250 m2, em caso de posse superior a cinco anos não contestada pelo proprietário.
A Constituição proíbe, no entanto, a usucapião de bens públicos, norma que evidentemente também se aplica à legitimação fundiária. Nesses casos, cabe ao ente titular do bem decidir, com base na sua própria legislação, sobre a regularização do assentamento, o título a ser transferido ao ocupante, e a natureza gratuita ou onerosa dessa transferência.
A nova Lei dispensa, ainda, os entes públicos das exigências de autorização legislativa, avaliação prévia e desafetação dos bens ocupados, permitindo que a regularização seja feita independentemente de autorização da Câmara Municipal e sem transparência.
A Lei promove alterações positivas para a regularização de assentamentos situados em terrenos particulares.
Tendo em vista que nenhuma lei pode abolir o direito de propriedade, que é assegurado pela Constituição, a titulação do ocupante de um imóvel privado somente pode se dar por usucapião ou por acordo entre as partes.
No que diz respeito à usucapião, a Lei anterior havia criado a chamada “legitimação de posse”, que nada mais é que um título emitido pela prefeitura, atestando a posse de determinado terreno na data da regularização. Uma vez registrada em cartório, a legitimação serve de prova para o reconhecimento extrajudicial da usucapião depois de cinco anos.
A nova Lei amplia a possibilidade de aplicação coletiva da usucapião, que já era prevista no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), e facilita sua obtenção extrajudicial, perante o registro de imóveis. A usucapião coletiva passou a ser possível sempre que área total do assentamento dividida pelo número de possuidores seja inferior a duzentos e cinquenta metros quadrados por possuidor. O reconhecimento extrajudicial, por sua vez, será possível sempre que o proprietário deixar de se manifestar quando notificado pelo oficial de registro de imóveis.
Caso não se verifiquem os requisitos de usucapião, o acordo entre as partes é facilitado pela atribuição ao município de uma função mediadora — anteriormente atribuída ao registro de imóveis — a ser exercida no início do processo de regularização. Entre os instrumentos disponibilizados ao município, destaca-se o consórcio imobiliário, anteriormente restrito às hipóteses de parcelamento ou edificação compulsórios, pelo qual o poder público poderá adotar as medidas necessárias à regularização, entregando ao proprietário, ao final do processo, lotes ou unidades edificadas de valor equivalente ao do imóvel original.
A Lei não terá qualquer impacto econômico significativo.
Um dos principais argumentos do governo em defesa da Lei 13.465/2017 é o de que a constituição de direitos de propriedade sobre os imóveis irregulares favorece o crescimento econômico, pois incentiva o investimento não apenas no próprio imóvel, mas também em atividades econômicas variadas, mediante a obtenção de empréstimos junto a instituições financeiras que tenham por garantia o bem regularizado.
Como já apontado, a Lei não ensejará nenhum tipo de regularização em massa, devido à necessidade de elaboração de projeto urbanístico específico para cada assentamento e ao despreparo dos municípios para essa tarefa. Independentemente desse fato, deve-se considerar, ainda, o irrealismo da expectativa de que esses títulos venham a ser aceitos pelo sistema financeiro como garantia de financiamentos.
A execução de uma hipoteca dessa natureza enfrentará forte risco jurídico, pois uma significativa parte dos juízes brasileiros tem um viés favorável à parte tida como mais fraca. Mesmo na hipótese de sucesso na esfera judicial, será difícil fazer cumprir uma eventual ordem de reintegração de posse e proteger o imóvel contra novas invasões. Mesmo no sistema de crédito imobiliário atualmente praticado, os bancos alienam os imóveis de mutuários inadimplentes sem retomar a sua posse, cabendo ao novo proprietário adotar as medidas necessárias à retomada do imóvel. No caso das favelas, é possível supor que a revenda de um imóvel recuperado na execução desse tipo de hipoteca encontrará poucos interessados, pois a retirada do morador será uma missão praticamente impossível.
O mais provável, portanto, é que os bancos evitem esse tipo de financiamento, aceitem com taxas de juros muito altas ou concedam financiamentos de valores significativamente inferiores ao do bem dado em garantia, de modo a compensar o risco da operação.
Uma eventual orientação aos bancos federais para que atuem nesse segmento, sem levar em consideração esses riscos, estaria em flagrante violação das normas de regulação bancária, que exigem prudência na concessão de empréstimos, e poderia gerar prejuízos, que seriam cobertos com recursos do Tesouro Nacional.
Apesar de conter inovações positivas, a avaliação global da Lei é negativa.
Tanto os defensores quanto os críticos exageram as supostas virtudes e defeitos da nova Lei. Ela não atribuirá propriedade aos milhões de moradores de assentamentos informais em todo o Brasil, como afirma o governo, nem permitirá a regularização de assentamentos de alta renda à margem da política urbana e ambiental, como afirmam os críticos. A Lei mantém o sistema instituído a partir de 2009 e promove alterações destinadas a facilitar regularização. Embora algumas inovações positivas tenham sido introduzidas, o saldo final é negativo, pois revogou-se desnecessariamente uma lei que poderia ter sido apenas pontualmente alterada e procedimentos fundamentais para a gestão transparente dos bens públicos foram dispensados.
1. Representada pelo Capítulo III da Lei nº 11.977, de 2009, e pelos arts. 288-A a 288-G da Lei de Registros Públicos. Foi revogada pela Medida Provisória 759, de 2016, que foi convertida na Lei 13.465/2017.
2. Esses e outros argumentos podem ser encontrados nos discursos proferidos na cerimônia de sanção da lei.
3. Os principais argumentos contrários podem ser encontrados no documento “Carta ao Brasil. Medida Provisória 759-2016: a desconstrução da regularização fundiária no Brasil”, subscrito por diversas entidades da sociedade civil.
Victor Carvalho Pinto é Consultor Legislativo do Senado Federal na área de Desenvolvimento Urbano; doutor em direito econômico e financeiro pela USP; autor do livro “Direito Urbanístico: Plano Diretor e Direito de Propriedade”, em 4ª edição.
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